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Foto do escritorIgor Biagioni Rodrigues

Crítica: "Anatomia de uma Queda" (2023)

A objetividade da lei e a subjetividade das pessoas.

Por Igor Biagioni Rodrigues.


Contém spoilers.


"Anatomia de uma Queda", dirigido por Justine Triet, é um suspense dramático francês que narra a história de um homem encontrado morto na neve, próximo ao chalé isolado onde vivia com sua esposa Sandra (Sandra Hüller), uma escritora alemã, e seu filho de 11 anos, que é deficiente visual. A investigação conclui que se trata de uma "morte suspeita": não é possível determinar se ele cometeu suicídio ou se foi vítima de assassinato. A viúva é acusada, e seu próprio filho se encontra no meio do conflito, entre o julgamento e a vida familiar. As dúvidas afetam a relação entre mãe e filho, uma vez que o menino é a única testemunha do ocorrido.


Em 1950, foi lançado o filme "Rashomon", do lendário cineasta japonês Akira Kurosawa. O longa contava a história de um assassinato de quatro maneiras diferentes, através de testemunhas diferentes. E mesmo assim, era impossível determinar a verdade sobre o ocorrido. A partir daí, um termo foi criado: "Efeito Rashomon", que basicamente descreve uma situação na qual não se pode saber o que de fato aconteceu devido aos diferentes julgamentos das pessoas que a presenciaram, já que cada um interpreta o ocorrido de forma pessoal.


"Anatomia de uma Queda" trabalha com esse tipo de narrativa, mas eleva o estilo a enésima potência, uma vez que não temos os acontecimentos narrados novamente por pessoas diferentes, mas sim, diversas linhas do tempo que vão se convergindo à medida que a história/julgamento vai progredindo.



O filme é preciso ao abordar a pós-verdade, um neologismo recente que descreve a situação em que os apelos às emoções e às crenças pessoais têm mais peso do que os fatos objetivos na formação da opinião pública. Assim como Daniel (Milo Machado Graner), filho de Sandra, que teve perda parcial da visão, também temos uma visão parcial dos acontecimentos, que vão sendo trazidos à tona através dos diálogos dos personagens, cenas no tribunal e através da própria montagem, que vai nos entregando de pouquinho em pouquinho informações e sentimentos que nos tendem ora para um lado, ora para outro.


A diretora e co-roteirista do filme, Justine Triet, fez um comentário pertinente: "Vejo o tribunal como um lugar onde nossas vidas são ficcionalizadas, onde uma história, uma narrativa, é colocada em nossa vida. Todos ali estão contando uma história, todos estão criando uma narrativa, e tudo está muito distante da verdade". Ela diz que os tribunais são como histórias de ficção, que existem três lados: o da defesa, da promotoria e a verdade. Verdade essa que jamais saberemos.


Sandra argumenta que ver um casal apenas por um pequeno momento pode fazer com que rotulemos ele de maneira equivocada. Além disso, ela não consegue se defender de maneira integral, visto que, como é alemã, não fala prioritariamente o francês ou o inglês. Precisa, então, sempre resumir seus pensamentos, traduzindo-os, o que, para alguém que é uma escritora, alguém que trabalha com as palavras, as escolhe muito bem, pode acabar sendo um desafio a mais. Utilizam-se de vários métodos para incriminá-la. Sua sexualidade é colocada como um fato que pode ter influenciado seu comportamento; suas traições, segundo a promotoria, ocorreram porque ela é bissexual. Seus livros dizem sobre seus pensamentos e vontades, uma vez que, em uma obra dela, a esposa mata o marido. É tudo muito subjetivo, vindo de uma organização que representa a objetividade da lei.



Quanto às atuações, são todas excelentes, principalmente a de Sandra Hüeler. O que ela entrega em seu gestual, em seus olhares, movimentos de mão, tom de voz, tudo nos atrai para ela em tela. Não é à toa que, em alguns momentos, a câmera a tira de cena, mostrando paisagens em que ela não está presente, para que possamos pensar um pouco fora da personagem (isso sem contar que, junto com Samuel Theis, Sandra entrega um dos diálogos/discussões mais impactantes do cinema dos últimos anos). Milo Machado Graner interpreta muito bem o filho de um casal tão complexo e que carrega o peso de ser a única testemunha do acontecimento. Swann Arlaud também não fica para trás, interpretando um advogado que possui muito mais que interesse profissional no caso. (E por último, o destaque vai para o cachorro, Messi, que atuação, meus amigos...)


A montagem e a fotografia do filme também são excelentes. Os enquadramentos variam entre planos gerais, planos médios e close-ups nos personagens, o que nos permite ter uma maior sensação das emoções que eles estão sentindo. À medida que o filme progride, a câmera se aproxima mais dos personagens, com leves tremores que aumentam a subjetividade, especialmente nos close-ups. Há também a utilização de técnicas visuais que lembram transmissões televisivas, com o intuito de mostrar como a mídia perpetua tais casos. A paleta de cores é mais fria, transmitindo a sensação de melancolia do universo do filme.


Em suma, “Anatomia de uma Queda” é uma obra-prima que trabalha conceitos de pós-verdade através do "Efeito Rashomon", divisão da vida do autor e sua obra, ficção e verdade; com atuações incríveis e um roteiro impecável. E a nós, só cabe fazermos como Daniel, escolhermos uma narrativa e tomarmos como verdadeira. Ela matou o marido? Sim ou não, não importa.


Para quem só se importa com números:

Nota- 10/10.


Ficha técnica:

Título Original: Anatomie d'une Chute

País de Origem: França

Roteiro: Justine Triet e Arthur Harari

Direção: Justine Triet

Duração: 151 min.

Classificação: 16 anos


Elenco:

Sandra Hüller como Sandra

Milo Machado Graner como Daniel

Swann Arlaud  como Vincent

Samuel Theis como Samuel

Antoine Reinartz como promotor

Jehnny Beth como Marge

Saadia Bentaïeb como Nour

Camille Rutherford como Zoé

Anne Rotger  como presidente

Sophie Fillières  como Mônica

45 visualizações2 comentários

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2 Comments


carolbiagioni
Mar 06

Que bacana, gente!

Por causa de vocês estou indo mais ao cinema e procurando mais filmes nos streamings do que nunca! Haha

Apenas continuem 👏🏻👏🏻👏🏻

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desenhandorecordat
desenhandorecordat
Mar 06
Replying to

Poxa...a gente fica muito feliz! Comentários assim fazem escrever valer a pena!

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