A história, a Arte e as Distopias
Por Igor Biagioni Rodrigues.
Contém spoilers!
"Arcane" é o primeiro passo da Riot Games fora do mundo dos jogos e esportes eletrônicos. Através de uma série animada televisiva, a empresa tenta alcançar outros ambientes artísticos e também um novo público. E ela faz isso com louvor. Por ser uma animação televisiva, a produção consegue não apenas atrair os fãs dos jogos da empresa (no caso, League of Legends), como também fãs de animes e animação em geral. Aliás, a adaptação de games para o audiovisual através de séries de TV tem sido bem assertiva, vide "The Last of Us" e "Fallout". E, de certa forma, Arcane foi uma das pioneiras nesse quesito.
Pequeno disclaimer: Sim, Arcane é uma história dos personagens de LoL, mas você não precisa ser familiarizado com esse universo para contemplar essa obra. Eu, por exemplo, não sou.
Enfim, a série é um primor espetacular não só como adaptação, mas como obra. Por isso, decidi dividir a presente crítica em três tópicos: a história, a arte dentro da animação e as distopias presentes em Arcane. Bom, sem mais delongas… Vamos ao que interessa!
1) A História
A temporada é dividida em três arcos, cada um com três episódios, que têm o intuito de fazer um grande estudo de seus personagens (os campeões de League of Legends) e de explorar “dois mundos”: as cidades irmãs, a rica e alta Piltover e a subterrânea e explorada Zaun. O primeiro arco conta a história de origem das irmãs Violet e Powder. Acompanhamos a morte de seus pais (numa bela, mas também macabra introdução, em que vemos os corpos mortos de um combate ao som da pequena Powder cantando) e sua adoção por Vander, líder de um grupo rebelde que vive em Zaun. Através de uma sequência de heist (assalto), conhecemos a relação da família adotiva das irmãs, composta por mais dois personagens, Claggor e Mylo, além de podermos ver a diferença social entre as duas cidades. Aliás, o enredo é bastante maduro ao retratar questões sociais e políticas, além de usar a violência para aumentar a carga dramática e utilizar muito bem o recurso de slow-motion para representar a dureza dos golpes e se afastar do gore desnecessário. Os três primeiros episódios têm um caráter introdutório rápido, mas eficaz, ao finalizar com uma tragédia que coloca definitivamente as irmãs em lados opostos.
Deixando a parte dramática um pouco de lado, a segunda trinca de episódios começa a explorar a parte política da série. Depois de um salto temporal, vemos o desenvolvimento de Ladoalto graças à tecnologia mágica, a Hextec, desenvolvida por Jayce e Viktor. Graças a isso, e principalmente aos Hexportais, ocorre um grande desenvolvimento econômico em Piltover, o que, consequentemente, aumenta o contrabando e as desigualdades sociais. O roteiro de Arcane trabalha com louvor a expansão de mundo e o desenvolvimento de personagens, fazendo com que o contexto macro influencie o micro e vice-versa. Se Jinx causa mudanças políticas em Ladoalto, a Hextec e seus avanços afetam drasticamente a Subferia de Zaun, aumentando a pobreza, a ganância e até mesmo o vício criado pela Cintila, elemento no qual Silco baseia todas as suas operações e força para controlar Zaun. É realmente impressionante a maturidade com que Arcane cria dramas envoltos numa narrativa política; não via algo assim desde Clone Wars. Mas, além de expandir o universo de LoL e de nos fazer conhecer ainda mais as subtramas políticas de corrupção que permeiam as duas cidades, o segundo grupo de episódios continua a desenvolver Vi e Jinx em caminhos cada vez mais opostos. Vi ganha um arco de vingança, raiva e redescoberta, ao lado de uma trama investigativa divertidíssima com Caitlyn, gerando traumas para Vi e trazendo a defensora para a dura realidade e diferença que opõe as duas cidades. Enquanto isso, Jinx cai cada vez mais fundo num poço de loucura. Isso sem contar a parte de Jayce, em que vemos sua decaída moral e conhecemos mais do passado de Viktor.
Após os três episódios iniciais contarem a trágica origem das duas irmãs, e a segunda trinca explorar a expansão de mundo e desenvolvimento político afetando o dramático, os três últimos episódios tinham a difícil missão de finalizar diversas tramas trazidas nessa temporada. Porém, com a segunda temporada em mente, criam novas tramas, escanteiam a parte política e decidem focar no confronto pessoal das personagens, deixando inúmeros questionamentos para a segunda temporada. Isso traz algumas complicações narrativas para alguns arcos, principalmente os de Jayce (que não possui um desenvolvimento orgânico como os outros personagens, indo de cientista bonzinho a político corrupto e depois vigilante), Mel (a inserção de sua mãe nos episódios finais traz mais perguntas do que respostas) e Viktor, que, apesar de possuir um interessante arco, é apressado demais. Mas acredito que nada disso tire o mérito da obra, uma vez que teremos a segunda e última temporada para resolver essas questões (assim espero, porque, se não, aí sim teremos problemas e múltiplas tramas inseridas), o que sempre é um risco, mas que os showrunners têm desenrolado com maestria até aqui.
Enfim, é interessante ressaltar a decisão na retratação dos combates nesses últimos três episódios. Com League of Legends sendo um jogo de arena (um subgênero de jogos eletrônicos de estratégia em que duas equipes de jogadores competem entre si em um campo de batalha predefinido), nessa trinca final de episódios, Arcane opta por uma decisão interessante: existem combates espalhados por todos os nove episódios da temporada; porém, nesses três episódios finais, as lutas 1 contra 1 são muito mais nítidas, como se o tempo e tudo ao redor dos personagens/campeões parasse para que eles se digladiassem ao som de música pop, vide a luta entre Ekko e Jinx.
Em suma, Arcane cria uma das melhores construções de personagem da TV (me refiro aqui a Jinx; é impressionante como todos os acontecimentos da temporada, sejam políticos ou dramáticos, passam por ela) e possui uma construção de mundo que é um primor narrativo e técnico.
2) A Arte
Arcane é um desbunde visual e sonoro. Sua animação 3D, misturada com elementos 2D, cria cenários exuberantes que parecem ter sido retirados de um concept art. Isso sem falar da modelagem dos personagens, que é extremamente expressiva, principalmente devido aos olhos deles, e a animação é extremamente fluida. Em relação à música, há uma mistura entre o orquestral e o pop que encaixa muito bem com a relação de problemas antigos e soluções novas (e mais problemas novos), além da dualidade criada em vários aspectos narrativos da série, como Jinx vs. Vi, Vander vs. Silco, Magia vs. Ciência, Ladoalto vs. Subferia, etc.
Mas o que eu gostaria de focar aqui são as referências de vanguardas e movimentos artísticos presentes na série, que possui estéticas retiradas do Art Nouveau e do Art Déco.
2.1) Art Nouveau
Foi um movimento artístico originado na França que se espalhou pela Europa entre 1890 e 1910. Ele se manifestou principalmente nas artes plásticas, na escultura, no design e na arquitetura, sendo uma das expressões mais marcantes do período conhecido como Belle Époque. Inspirado por formas naturais e pela fluidez do mundo orgânico, o estilo se destacou por suas linhas assimétricas e curvas sinuosas, bem como pela representação de folhagens, flores, animais e figuras mitológicas. Na arquitetura, o estilo se manifestava de forma decorativa, com o uso de elementos como ferro forjado, vidro, cerâmica e madeira para criar fachadas ricas em ornamentos e formas orgânicas. Nas artes gráficas e decorativas, destacava-se com pôsteres e ilustrações que usavam linhas curvas e uma paleta de cores suaves para representar mulheres, flores e cenas naturais. Existe muita influência das características desse movimento na construção estética de Arcane.
2.2) Art Déco
Outro movimento que influenciou bastante a concepção artística de Arcane foi o Art Déco. O Art Déco é um estilo artístico de origem europeia que ganhou destaque internacional no início do século XX, alcançando seu auge na década de 1920. Derivado do termo francês arts décoratifs, o estilo marcou presença em diversas áreas, como arquitetura, design de interiores, moda, cinema e artes visuais.
Embora tenha surgido na Europa, o Art Déco se espalhou globalmente, especialmente pelos Estados Unidos nos anos 1930. Ele foi impulsionado pela Exposição Internacional de Artes Decorativas e Industriais Modernas, realizada em Paris em 1925, que destacou o artesanato refinado e o luxo, associando o estilo à burguesia do pós-guerra. O estilo se distingue pelo uso de formas geométricas e estilizadas, em contraste com as formas orgânicas do Art Nouveau.
3) As Distopias
Distopias são lugares, épocas, sociedades ou cenários imaginários nos quais as pessoas vivem em condições de opressão, desespero e privação de direitos. O oposto de utopia. Na construção de suas cidades/cenários, Arcane se baseia em algumas das mais famosas distopias, e sua representação reflete diretamente no contexto e na situação política e econômica de cada uma das localidades.
3.1) Steampunk
É um subgênero da ficção científica que combina tecnologia retrofuturista e uma estética inspirada, principalmente, nas máquinas a vapor da era industrial do século XIX. As histórias steampunk frequentemente se passam em uma versão alternativa da Era Vitoriana, onde a energia a vapor continua sendo amplamente utilizada. Os cenários costumeiramente são mundos de fantasia que empregam tecnologias semelhantes baseadas no vapor. Podemos associar essa estética com Piltover, trazendo toda a ideia de progresso que a cidade preza, ainda mais após a criação da Hextec.
3.2) Cyberpunk
É um subgênero da ficção científica caracterizado pela combinação de alta tecnologia com uma qualidade de vida decadente, resumida na expressão "alta tecnologia, baixa qualidade de vida". O termo vem da junção de "cibernética" e "punk" alternativo. Esse estilo imagina um futuro distópico que mistura avanços científicos, como cibernética e tecnologias da informação, com uma sociedade em colapso ou profundamente transformada, criando cenários repletos de barulho, fumaça e marginalidade, baseados em alta tecnologia. Vale ressaltar também o uso comum das cores neon em sua iluminação. Podemos associar essa estética a Zaun, onde a marginalidade e a degradação humana (principalmente por causa da Cintila) se contrastam com a alta tecnologia do lugar.
3.3) Solarpunk
O Solarpunk é um movimento artístico e um subgênero da ficção especulativa que explora futuros positivos para a humanidade, focados na resolução de desafios como mudanças climáticas, poluição e desigualdade social. O Solarpunk imagina um futuro otimista, onde a humanidade supera suas crises por meio de inovação e harmonia com o meio ambiente. Essa estética pode ser associada ao esconderijo dos Fogolumes e aos cidadãos liderados ou aliados de Ekko.
Arcane possui uma qualidade técnica em sua animação que revoluciona as séries televisivas animadas na mesma proporção que "Aranhaverso" fez com os longa-metragens de animação. Sem contar que possui uma narrativa complexa e adulta que utiliza o micro para afetar o macro e vice-versa, com personagens muito bem trabalhados, uma trilha sonora memorável e uma direção de arte extremamente competente que faz com que cada frame seja uma pintura.
Para quem só se importa com números:
Nota- 10/10.
Ficha Técnica:
País de Origem: Estados Unidos
Criação: Christian Linke e Alex Yee
Roteiro: Christian Linke e Alex Yee (baseado no universo League of Legends)
Direção: Pascal Charrue e Arnaud Delord
Classificação: 14 anos
Duração: 3 partes de aproximadamente 128 min cada
Elenco:
Hailee Steinfeld como Vi
Ella Purnell como Powder / Jinx
Kevin Alejandro como Jayce Talis
Katie Leung como Caitlyn Kiramman
Jason Spisak como Silco
Toks Olagundoye como Mel Medarda
JB Blanc como Vander
Harry Lloyd como Viktor
Mick Wingert como Heimerdinger
Ellen Thomas como Ambessa Medarda
Brett Tucker como Singed
Remy Hii como Marcus
Abigail Marlowe como Cassandra Kiramman
Mick Weingert como Heenot
Josh Keaton como Deckard
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