A caricatura e o existencialismo de plástico.
Por Igor Biagioni Rodrigues
Contém spoilers!!
Antes de começar a falar propriamente do filme e dos diversos subtextos que o mesmo possui, gostaria de dizer que por mais que eu consiga te trazer um certo nível de questionamento e análise, jamais conseguiria alcançar um nível de reflexão de uma escritora/criadora de conteúdo a respeito desse filme, então fica aqui a sugestão para que você vá atrás desses conteúdos.
“Barbie” conta a história da boneca que vive na Barbielândia, um mundo mágico das Barbies, onde elas vivem o melhor dia de suas vidas todos os dias. Em um certo momento, a Barbie estereotipada (Margot Robbie) começa a questionar o sentido de sua existência e acaba “estragando”. Para resolver a situação, ela é forçada a ir para o Mundo Real.
Falarei rapidamente da parte técnica, pois meu maior intuito é comentar alguns subtemas presentes no longa. Dito isso, o roteiro de Greta Gerwig e Noah Baumbach é muito assertivo. Desde que foi anunciado em 2019, o filme foi tratado como uma piada, um longa que retrataria as artificialidades do universo fictício da boneca. No entanto, o filme usa justamente desse elemento como um subterfúgio para construir suas críticas. A composição de elenco é um dos vários acertos do filme, principalmente devido às excelentes atuações de Margot Robbie e Ryan Gosling.
Vale destacar, não somente a brilhante trilha sonora e coreografias musicais, como também a Direção de Arte e a Direção de Fotografia. A Direção de Arte possui uma construção cenográfica incrível. Através de seus cenários e figurinos, nos coloca em um mundo autenticamente artificial, a Barbielândia. A Direção de Fotografia do mexicano, Rodrigo Prieto (ele foi diretor de fotografia de alguns filmes do Scorsese, como “O Lobo de Wallstreet”, “O Irlandês” e “Killers of the Flower Moon”), não fica para trás, já que faz com que em nenhum momento, mesmo diante de tantos tons de rosa, a fotografia fique saturada ou enjoativa demais. Por último, e longe de ser o menos importante, o trabalho de Greta Gerwig como diretora. A cineasta que já havia dirigido dois ótimos filmes de amadurecimento de personagens femininas (‘Lady Bird” e “Frances Ha”). Foi uma escolha extremamente feliz da Warner escutar a indicação de Greta feita por Margot Robbie. A diretora usa de forma brilhante o tropo de jornada da personagem principal para criticar e debater temas, tais como as disparidades sociais, a luta feminista e o patriarcado.
Agora, vamos além do filme. A película vem sendo atacada justamente por pessoas que possuem o tipo de comportamento e pensamento que o longa critica através de sua sátira. Recentemente, na Internet, um movimento vem ganhando força e vários adeptos: O Red Pill. O nome que referencia a pílula do filme “Matrix” que era responsável por trazer as pessoas para realidade, é um movimento machista/misógino que tem como pensamento base a ideia de inferiorizarão da mulher perante o homem. Alinhado a isso, surgiu outra corrente, a do “literalmente eu”, que consiste em homens que utilizam personagens de filmes/séries para criar uma profundidade filosófica como símbolo de um imaginário de uma masculinidade. “Barbie” satiriza essas ideias, como na cena em que a Barbie tem que escolher entre um sapato de salto alto ou uma sandália (uma analogia que vai além de “Matrix”), ou em cenas que brincam com o universo cinematográfico favoritos de pessoas adeptas a esse imaginário masculino, como o filme “O Poderoso Chefão” e o diretor Zack Snyder.
Devido a esses fatores, e somados a representação de personagens masculinos, certas pessoas criticam o filme dizendo que ele é “anti-homem”. A falta de habilidade dessas pessoas em entenderem a inversão de papéis da Barbielândia, em um lugar onde reina e o matriarcado e os Kens são só os Kens, mesmo quando isso é literalmente dito, é surpreendente. Um dos aspectos que me incomoda no filme é o fato dele se auto explicar demais, eu achava que era subestimar demais os espectadores, mas após ver comentários do tipo, só mostra que mesmo com um enredo extremamente claro, as pessoas não possuem capacidade cognitiva para entender.
“Barbie” utiliza da caricatura para debater questões como o patriarcado. E já que mesmo as coisas sendo ditas de forma escancarada muita gente não entendeu, vamos tentar explicar e até mesmo desenhar. O que é uma caricatura? Segundo o dicionário Aurélio, a caricatura é um “Desenho que, pelo traço, pela escolha dos detalhes, acentua ou revela certos aspectos caricatos (ridículos, burlescos, grotescos) de pessoa ou fato. Representação burlesca em que se arremedam comicamente pessoas e fatos; arremeto, farsa, sátira.” Podemos assemelhar a caricatura então ao cartum. Em “Desvendando os Quadrinhos”, Scott McCloud diz que o cartum possui tanto apelo, pois “Ao reduzir uma imagem ao seu ‘significado’ essencial, o artista pode ampliar esse significado de forma impossível para a arte realista.” Sendo assim, o longa traz de uma forma comicamente exagerada alguns aspectos com o intuito de jogar a luz sobre temas extremamente contemporâneos e de necessária discussão. E fazendo isso, ele incomoda justamente quem deve ser incomodado.
Dito tudo isso, partirei para dois aspectos mais filosóficos do filme: o Existencialismo e a Teoria das Ideias de Platão. O Existencialismo foi uma corrente filosófica originada no século XIX e que ganhou força no século XX. Ela é pautada por uma metafísica e numa reflexão em relação as condições de existência do ser. Em suma, a corrente existencialista defende a ideia de que o ser humano cria um sentido a sua existência através de suas ações. Certo, mas o que era a Teoria das Ideias? Para Platão, a realidade era dividida em duas partes: O Mundo Sensível (o mundo material, aquele que pode ser captado pelos cinco sentidos) e o Mundo das Ideias (o mundo ideal, aquele que é verdadeiramente perfeito). Esse dualismo platônico pode ser melhor entendido através da sua “Alegoria/Mito da Caverna”. Nessa alegoria, o pensador ateniense conta sobre um grupo de homens que viviam acorrentados em uma caverna (o Mundo Sensível). Atrás deles havia uma fogueira, e por ali diversas pessoas passavam, porém, os homens só conseguiam enxergar as sombras dessas pessoas, e acreditavam que aquilo era a realidade. Em um certo dia, um dos homens rompe as correntes que o prendiam e consegue escapar da caverna (o exterior da caverna é uma analogia ao Mundo das Ideias). Ao sair de lá, o homem é cegado momentaneamente pela luz do mundo real e depois descobre que sua visão nada mais era do que a sombra da realidade.
Ok, mas o que diabos esses conceitos tem a ver com “Barbie”? Bom, a Barbie Estereotipada vivia em um mundo que ela acreditava ser perfeito e que graças às Barbies, todos os problemas femininos haviam acabado. Acontece que ao chegar no mundo real, ela descobre que a realidade não era aquilo que ela acreditava e que a Barbielândia não era tão perfeita assim, vendo-se obrigada a romper suas amarras e seus ideais para ver o mundo como realmente é, como ela se encaixa nele e como ela consegue mudá-lo de fato. Através de suas escolhas, a Barbie dá um sentido a sua existência e a sua própria essência, e parafraseando uma das maiores pensadoras da corrente existencialista, Simone de Beauvoir, ela descobre que não nasceu uma mulher, mas sim que tornou-se uma (literalmente).
Sim, o filme questiona patriarcado, o machismo estrutural, os movimentos reacionários na Internet (que assim como o Ken nem sabem o que é o patriarcado), a própria Mattel, que utiliza da representatividade de suas bonecas como uma forma de ganhar mais dinheiro (e nem está se importando de ser criticada, uma vez que está ganhando rios de dinheiro com esse longa), mas ele não é revolucionário. E tudo bem não ser. Ele poderia ser uma grande propaganda da boneca e não é. Ele poderia ser uma uma grande sátira com o simples intuito de buscar o lucro e não é. “Barbie” é um filme que fura a bolha, que bateu diversos recordes de bilheteria e está sendo cada vez mais notado. E com isso, joga uma luz em temas extremamente atuais, por isso ele é tão necessário.
Em suma, “Barbie” utiliza da metalinguagem e de uma mistura de gêneros cinematográficos (comédia, drama, musical) para cumprir as funções primordiais da arte: nos emocionar e nos levar a reflexão.
Para quem só se importa com números:
Nota-8/10.
Extras:
Ficha técnica:
Título Original: Barbie
País de Origem: Estados Unidos e Canadá
Roteiro: Greta Gerwig, Noah Baumbach
Direção: Greta Gerwig
Duração: 114 minutos
Classificação: 12 anos
Elenco:
Margot Robbie como Barbie Estereotipada
America Ferrera como Gloria
Issa Rae como Barbie Presidente
Kate McKinnon como Barbie Estranha
Alexandra Shipp como Barbie Escritora
Emma Mackey como Barbie Física
Hari Nef como Barbie Doutora
Sharon Rooney como Barbie Advogada
Ana Cruz Kayne como Barbie Juíza
Ritu Arya como Barbie Jornalista
Dua Lipa como Barbie Sereia
Nicola Coughlan como Barbie Diplomata
Emerald Fennell como Midge
Ryan Gosling como Ken
Simu Liu como Ken
Kingsley Ben-Adir como Ken
Ncuti Gatwa como Ken
Scott Evans como Ken
John Cena como Ken
Michael Cera como Allan
Ariana Greenblatt como Sasha
Rhea Perlman como Ruth Handler
Will Ferrell como CEO da Mattel
Helen Mirren como Narradora
Comments