O Legado da Fox, o fanservice e o Jesus da Marvel.
Por: Igor Biagioni Rodrigues.
Grande parte desse texto não possui spoilers, mas há um aviso (por precaução).
-Os anos de chumbo da Casa das Ideias
A Marvel Comics, também conhecida como “A Casa das Ideias”, é uma das maiores empresas do ramo do entretenimento no mundo, cedendo seus personagens para inúmeros tipos de adaptações: filmes, séries, videogames, livros, etc. Mas nem sempre foi assim. Vamos voltar um pouco no tempo, lá na década de 1960, época em que Jack Kirby, Steve Ditko, Stan Lee e diversos outros artistas reformularam a antiga Timely Comics e a batizaram de “Marvel”, em alusão aos seus maravilhosos personagens. Após anos publicando histórias de guerra e terror em seus quadrinhos, a Marvel agora ascendia para o reinado da superaventura, com publicações voltadas para o público em geral, de crianças a adultos.
Suas histórias fizeram sucesso devido à humanização de seus personagens, que eram bastante falhos, o que fazia com que o público se aproximasse mais deles do que dos deuses da Distinta Concorrência. Foi aí que surgiu o alvorecer de personagens como Homem-Aranha, Quarteto Fantástico, X-Men e Vingadores.
Durante a década seguinte, a Casa das Ideias continuou a crescer e criar cada vez mais personagens e histórias memoráveis. Porém, na década de 1980, o mercado de quadrinhos começou a mudar. As histórias ficaram mais sombrias (vide “Cavaleiro das Trevas” de Frank Miller, Klaus Janson e Lynn Varley, e “Watchmen” de Alan Moore, Dave Gibbons e John Higgins, só para citar as mais famosas). Não só o teor das histórias estava mudando, como o público também, ficando cada vez mais nichado, com colecionadores comprando a mesma história várias vezes apenas porque saía uma nova edição dela. Assim, em 1989, a Marvel Entertainment Group foi comprada por Ron Perelman, um investidor milionário com ambições grandes demais.
No intuito de lucrar com esse novo mercado de colecionadores, Ron Perelman tentou inovar, associando a Marvel a empresas de brinquedos, figurinhas e outros produtos licenciados, o que aumentou os preços dos quadrinhos. Além disso, o milionário, junto com a empresa de brinquedos e produtos licenciados ToyBiz, começou a desenvolver aquilo que viria a ser conhecido como Marvel Studios para lançar filmes adaptando os personagens da editora. Por essa e outras razões, a Marvel, que via as vendas em alta em 1993, teve que declarar falência em 1996, o que não passava de um plano de Perelman para conseguir controle total da empresa sem ter que lidar com investidores e acionistas.
Não fosse o bastante, em 1994, os direitos de adaptação dos seus personagens mais lucrativos e famosos, como X-Men, Quarteto Fantástico e Homem-Aranha (entre outros), foram vendidos para empresas como Fox e Sony. Porém, em 1998, Avi Arad e Ike Perlmutter, dois membros da ToyBiz, tiraram a Marvel da falência, removeram Perelman do cargo e o substituíram por Joseph Calamari. Assim, filmes como “Blade”, “X-Men”, “Quarteto Fantástico” (da Fox) e a trilogia de “Homem-Aranha” (da Sony) mostraram que um grande futuro nas telonas estava por vir para os super-heróis.
A Marvel, que já não via muito a cor do dinheiro com essas adaptações, uma vez que grande parte do lucro ia direto para Fox e Sony, decidiu começar o seu próprio Universo Cinematográfico com os personagens que lhe restavam. Para isso, fizeram acordos arriscados com bancos para produzir tais filmes. Acordos arriscados? Como assim? Bom, se o filme não tivesse um certo lucro, os direitos dos personagens iriam para os bancos (loucura, né?). Porém, o sucesso veio, e mais importante do que isso (para as empresas), o dinheiro também. E não foi pouca coisa, o que atraiu a poderosa Disney, que em 2009 comprou a Marvel por 4 bilhões de dólares.
Bom, o resto vocês já devem saber. Seguindo a frase “O mundo não gira, ele capota”, o MCU (Marvel Cinematic Universe) se tornou a franquia mais lucrativa da História do Cinema e a Disney comprou a Fox, adquirindo os direitos de X-Men, Quarteto Fantástico e companhia.
Fonte: Forbes, Slates, Den of Geek e Legião dos Heróis
- O Legado da Fox
Vocês devem estar pensando: “Tá, muito legal isso daí, senhor palestrinha. Mas o que isso tem a ver com Deadpool & Wolverine?”. Vamos lá então: Durante anos, os fãs dos quadrinhos da Marvel sonhavam com adaptações (de qualidade) dos seus personagens favoritos. Após algumas sofrências produzidas nos anos 1990, os filmes da Fox foram um grande abraço para esse público. Eles têm seus defeitos? Claramente (a cronologia de X-Men que o diga), mas foi graças à venda dos direitos de adaptação desses personagens e desses filmes que a Marvel sobreviveu financeiramente, deu a volta por cima e, por bem ou por mal, criou a franquia mais lucrativa da História da Sétima Arte, encheu as salas de cinema e transformou ser fã de super-heróis em algo mainstream (um conceito que expressa uma tendência ou moda principal e dominante).
“Deadpool & Wolverine” serve como uma grande e carinhosa despedida a esses filmes que marcaram uma geração. As participações especiais sem fim nos deixam com um sorriso e uma nostalgia de uma época em que os filmes de super-heróis eram mais simples, de um passado que pavimentou o futuro.
ALERTA DE SPOILER (daqui para baixo, leia por conta e risco)
-O Jesus da Marvel
Deadpool teve sua primeira aparição em “The New Mutants” #98 em fevereiro de 1991, criado por Fabian Nicieza e Rob Liefeld. O personagem fez sucesso, ganhou uma minissérie, depois outra até chegar a ter uma revista mensal. Com o passar do tempo, o Mercenário Tagarela foi criando sua fama baseada no humor, na metalinguagem e na colcha de retalhos de personagens nos quais foi inspirado (Exterminador, Homem-Aranha e até Wolverine). Fazendo críticas que não levavam a lugar nenhum e não sendo tão inovador ao quebrar a quarta parede (Mulher-Hulk fazia isso já há algum tempo), era improvável imaginar que Wade Wilson se tornaria o sucesso que é hoje, ainda mais depois daquela participação num certo filme do Wolverine. Contudo, foi justamente ele que trouxe uma visão muito interessante sobre blockbusters e levantou um pouquinho a moral da Marvel, mesmo chegando em uma época, nas próprias palavras dele, “de baixa”.
“Deadpool & Wolverine” reúne a dupla mais mortal da Marvel. Wade Wilson vive um período de calmaria em sua vida seis anos após os acontecimentos de “Deadpool 2”, até que ele é raptado pela AVT (Agência de Vigilância Temporal), que deseja integrá-lo ao MCU, uma vez que seu universo será destruído após a morte de seu âncora, Logan. Nisto, o Mercenário Tagarela se une a um Wolverine beberrão para salvar o seu mundo, tendo que enfrentar inimigos poderosos e se aliando a saudosos heróis num grande lixão dimensional, o Vazio, recheado de personagens da Fox.
O longa é fruto da greve de roteiristas de 2023, o que explica não só a baixa qualidade do roteiro, como também os vários nomes creditados como roteiristas: Ryan Reynolds, Rhett Reese, Paul Wernick, Zeb Wells e Shawn Levy (até o Zeb Wells, gente!). Assim, a quebra da quarta parede e o abuso da nostalgia servem como uma grande muleta narrativa. Não vejo isso aqui como o grande problema.
A película possui defeitos. As cenas de ação são ruins, principalmente a coreografia das lutas, que somadas ao movimento de câmera, ficaram extremamente confusas. Shawn Levy, apesar de acertar nas cenas de body horror de Cassandra Nova, deixa a desejar no humor físico do Mercenário Tagarela e aposta muito na violência gráfica. Hugh Jackman está na sua pior atuação como Wolverine? Sim, a dramaticidade não tem peso e a comicidade funciona. Porém, também não é o grande problema.
O que é “o grande problema” então? Ryan Reynolds e todo o marketing venderam Deadpool como o “Jesus da Marvel”, o que, após o anúncio do retorno de Robert Downey Jr. como Doutor Destino, ficou claro quem a própria Marvel pensa que é o salvador por aqui... Isso, somado ao fato de que o filme não serve para impulsionar o futuro do MCU, mas sim para fazer uma homenagem ao universo da Fox e seus personagens, criando um grande parque de diversões (Alô, Scorsese!) recheado de lutas, explosões e participações especiais.
Mas isso não apaga a interessante ideia metalinguística do longa. Considerando o Vazio de forma metafórica, lá não passa de um lugar para onde todas as produções, sejam elas boas ou ruins, vão parar depois de seu “esquecimento”. Um lugar em que a Fox foi parar, um lugar onde o MCU e o subgênero de super-heróis vão parar no futuro (não tão distante). Então é isso, eles vão para o lixo? Sim, mas isso não significa o fim. A indústria cinematográfica hollywoodiana vive de momentos, vide os filmes westerns. E agora, a era dos heróis está se esgotando, mas novos gêneros virão e também vão se esgotar.
“Deadpool & Wolverine” dá um novo respiro para Logan e diversos personagens. Assim como um dia Deadpool foi responsável por colocar a carreira de Ryan Reynolds num lugar ruim, foi o próprio personagem, retrabalhado e reinventado, que o trouxe para holofotes nunca antes vistos pelo ator. Sempre dá para reciclar um lixo...
Para quem só se importa com números:
Nota- 7/10.
Ficha Técnica:
Título original: Deadpool & Wolverine
País de Origem: Estados Unidos
Roteiro: Ryan Reynolds, Rhett Reese, Paul Wernick, Zeb Wells, Shawn Levy
Direção: Shawn Levy
Duração: 127 min.
Classificação: 18 anos.
Elenco:
Ryan Reynolds como Deadpool/ Wade Wilson/ Nicepool
Hugh Jackman como Wolverine/Logan
Morena Baccarin como Vanessa Carlysle
Rob Delaney como Peter
Leslie Uggams como Althea / Al Cega
Karan Soni como Dopinder
Brianna Hildebrand como Ellie Phimister / Míssil Adolescente Megassônico
Stefan Kapičić como Colossus/ Piort Rasputin
Shioli Kutsuna como Yukio
Randal Reeder como Buck
Lewis Tan como Shatterstar
Emma Corrin como Cassandra Nova
Matthew Macfadyen como Senhor Paradox
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