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Crítica: “Deus e o Diabo na terra do Sol” (1964)

Atualizado: 18 de set. de 2022

A dialética no Sertão

Por Igor Biagioni Rodrigues


(Cena do filme "Deus e o Diabo na terra do Sol"-1964- Copacabana Filmes, Glauber Rocha- a reprodução da imagem acima não possui fins lucrativos.)


-Contém spoilers


“Deus e o Diabo na terra do Sol” é um longa-metragem brasileiro, dirigido por Glauber Rocha, que estreou em 1964. Indicado para o Palma de Ouro em Cannes, e com seu emblemático cartaz, criado por Rogério Duarte, saindo na capa da revista francesa de cinema Positif, “Deus e o Diabo na terra do Sol” estreou um pouco depois do golpe militar que ocorrera no Brasil nesse ano, sendo censurado. O longa conta a história de Manuel e Rosa, um casal que, após um desentendimento entre Manuel e um coronel para quem ele trabalhava, precisam fugir pelo sertão em busca de uma vida melhor, buscando refúgio entre “messias” e cangaceiros.


Pode-se dizer que o filme é moldado por uma dialética. O filósofo Georg Wilhelm Friedrich Hegel propôs a ideia da dialética como um movimento ascensional que busca a perfeição, ou seja, um conflito entre dois opostos, tese e antítese, que resultam em uma síntese posterior dos dois. Percebe-se esse dualismo em diversos aspectos do filme. O título do mesmo já nos retrata um conflito entre opostos, porém, o longa se estende muito além do maniqueísmo.


O sertão apresentado por Glauber Rocha, num primeiro momento nos parece realmente um inferno, assim como Manuel aparenta ser um herói injustiçado. Porém, as nuances do filme vão além do preto e branco, e atuam muito mais no cinza. O sertão apresentado por Glauber não é um inferno, muito menos um céu, seria um limite entre os dois, uma espécie de purgatório, como é dito por Max Valarezo em sua análise sobre o filme.


O dualismo está também presente nas personagens: Manuel transita entre o certo e o errado inúmeras vezes, seja como um seguidor religioso fervoroso ou como um cangaceiro. Rosa, que aparentemente era o alicerce moral do filme, também se desloca entre esses dois lados, por exemplo, ao matar o líder religioso. Sebastião, se demonstrava como um líder messiânico que prometia que “os pobres virariam ricos, que os ricos virariam pobres e que o sertão viraria mar”, porém suas promessas eram apenas palavras ao vento, e ele revela seu lado violento ao querer realizar sacrifícios para que a glória divina se realize. A Igreja também aparece realizando atos considerados imorais, como pagando um matador profissional para assassinar Sebastião e seus seguidores. Este, porém (Antônio das Mortes) também mostra uma ambiguidade ao demonstrar receio em ter que matar “o povo de Deus” e antes de enfrentar Corisco, faz um discurso como se partisse rumo a uma Guerra Santa em nome do sertão.


Essa dualidade se estende ainda mais no roteiro. Num primeiro momento, Manuel busca ajuda para solução de seus problemas através da fé em um movimento messiânico (o diretor faz claramente uma referência aos acontecimentos de Canudos), após perder sua crença nesse movimento de um plano tão astral, Manuel busca consolo em algo mais físico, no Cangaço. Embora este seja violento, ele mostra ações mais diretas e palpáveis, porém ambos estão longe de alcançarem sucesso contra Antônio das Mortes (pode-se dizer que personagem é uma alusão a força repressora do Estado, que não pensa em resolver os problemas da população marginalizada, e sim acabar definitivamente com ela e com os que ameaçam o status quo).


Essa “dialética” vai além do enredo, se estendendo para partes técnicas do filme. Como por exemplo a trilha sonora. Composta por músicas eruditas (compostas magistralmente por Villa Lobos) e populares (compostas pelo próprio Glauber Rocha). Já na parte da produção, existe o dualismo entre o teatral e o realismo, sendo a parte teatral a atuação dos atores (desde a destoante Yoná Magalhães como Rosa ao irretocável Corisco de Othon Bastos), enquanto o real se encontra nos ambientes em que o filme foi gravado, o verdadeiro sertão, sem montagens específicas, Glauber mostrou como este realmente é.


O filme cumpre sua função como uma obra de arte, uma vez que fomenta uma reflexão social, coletiva, e faz florescer uma nova visão sobre um assunto. Cumprindo então o papel de transformação social da arte. Isso pode ser percebido no filme através de Manuel e Rosa, mesmo sendo personagens principais da obra, eles cumprem o papel de observadores no meio de um nordeste brasileiro que serve como representação do país todo. Glauber Rocha mostra a religião, a política e o sofrimento, através dos olhares do povo, de um povo esquecido pelo Estado, e que busca até o limite sobreviver.


Inspirado por diversos movimentos cinematográficos, como: o Neorealismo Italiano (um cinema que, a partir da ficção, introduz e reproduz elementos relativos à realidade econômica, política e social), Nouvelle Vague (um cinema mais autoral, em que o diretor é peça central do filme) e o Western (um cinema voltado as histórias do faroeste americano); Glauber Rocha utiliza desses movimentos como ponto de partida para criar algo totalmente novo e original, demonstrando um Sertão, e o Brasil de uma forma tão poética quanto realista, fazendo valer do lema do Cinema Novo: “Uma câmera na mão, e uma ideia na cabeça”.


“Deus e o Diabo na terra Sol”, se mostra totalmente integrado as características do Cinema Novo, não apenas no quesito de crítica sociocultural e política, mas também em cenas de improviso e cenas de ação teatrais, mas que não prejudicam em nada o filme. Devido as redublagens ao longo dos anos, a edição e a mixagem de som ficaram um pouco deslocadas dentro do espaço cinematográfico, mas novamente, nada que estrague o longa.


Em relação a análise da fotografia, alguns quesitos que influenciaram as escolhas de Waldemar Lima e Glauber Rocha devem ser levados em consideração. O filme é ambientado no sertão da Bahia, dispondo em sua maioria, de cenas externas (exceto por cenas importantes que são gravadas no interior de ambientes, como a morte de Sebastião, gravada dentro de uma capela).


Apesar de inspirar em outras regras do cinema clássico, Waldemar Lima e Glauber optam por super enquadramentos, um tipo de plano conjunto considerado clichê na fotografia cinematográfica, porém, que faz sucesso desde o lançamento do filme Cidadão Kane (1941) de Orson Welles.


A câmera está muitas vezes na mão, o que sugere algum movimento (“Uma câmera na mão, e uma ideia na cabeça”). Sugerindo o teatro filmado do cinema originário, sendo uma preferência estética. Há também uma descontinuidade de luz nos planos médios e closes que se passam em locações ao ar livre, certamente em função da mudança da luz natural. Assim, o Cinema Novo tratava de valorizar a liberdade dos movimentos de câmera e a autonomia da luz, como no período da Nouvelle Vague.


Dessa forma, “Deus e o Diabo na terra do Sol” é um marco na história cinematográfica do país e um retrato muito importante do Brasil, que não evoluiu nesses cinquenta anos desde a estreia do filme. As injustiças não deixaram de acontecer e o sertão ainda não virou mar.


Para quem só se importa com números:

Nota- 9/10


Ficha técnica:

Título original: Deus e o Diabo na Terra do Sol

Diretor: Glauber Rocha

Duração: 120min

Classificação: 14 anos

País de origem: Brasil


Elenco:

Geraldo Del Rey – Manoel

Yoná Magalhães – Rosa

Othon Bastos – Corisco

Maurício do Valle - Antônio das Mortes

Lídio Silva - Sebastião

Sônia dos Humildes - Dadá

Roque Santos - Cego Júlio

João Gama - Padre

Antônio Pinto - Coronel da Região

Milton Rosa - Coronel Moraes


Prêmios:

Prêmio Especial do Júri no Festival de Acapulco, 1966.

Prêmio Náiade de Ouro no Festival do Cinema Livre, 1964.

Prêmio Saci, 1965 de Melhor Produtor para Mendes, Luiz Augusto e Melhor Ator Coadjuvante para Valle, Maurício do, São Paulo, SP.

Prêmio Governador do Estado, 1964 de Melhor Música para Ricardo, Sergio.



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