Uma história da Mulher-Maravilha no melhor estilo das tragédias gregas!
Por: Iuri Biagioni Rodrigues
Quando falamos em histórias de super-heróis, geralmente pensamos em grandes lutas, invasões alienígenas, mundo à beira da destruição e por aí vai. Então, quando pegamos uma história de caráter mais intimista e que os diálogos são mais importantes do que golpes e poderes, ficamos positivamente surpreendidos. É exatamente isso que ocorre em Mulher-Maravilha Hiketeia.
A graphic novel que conta com roteiro de Greg Rucka, arte de J.G. Jones, arte-final de Wade Von Grawbadger e cores de Dave Stewart foi lançada nos EUA em 2002 e republicada recentemente no Brasil pela editora Panini com tradução de Carol Pimentel.
A História começa com a explicação do que é a Hiketeia: um ritual e um juramento dos gregos antigos que não pode ser quebrado. Nele, uma pessoa chamada de "suplicante" pede ajuda e oferece submissão para outra chamada de "suplicado" que deve oferecer abrigo e proteção para essa pessoa necessitada. O não cumprimento gera consequências gravíssimas para o "suplicado", pois são atacados pelas Erínias (ou Fúrias).
Na sequência, conhecemos uma jovem chamada Danielle Wellys que vive em Gotham e é perseguida pelo Batman. Ao escapar do Cavaleiro das Trevas, a garota vai até a Mulher-Maravilha para pedir ajuda e ao encontrar com a heroína, realiza o ritual da Hiketeia. A princesa das Amazonas aceita. Assim, Wellys é a suplicante, Diana o suplicado e ambas estão ligadas até que a primeira decida liberar a Mulher-Maravilha da posição de protetora.
Batman ainda procura Danielle e é claro que essa busca vai levá-lo até a embaixada de Themyscira e, consequentemente, a um confronto com a Mulher-Maravilha, pois a partir do momento em que Diana aceita o ritual, ela é obrigada a defender Wellys de qualquer perigo. Quando os dois heróis se encontram, Batman explica que a garota cometeu crimes de assassinato e que precisa levá-la à justiça.
Começa aí o embate entre os dois membros da Liga da Justiça, mas não é um combate físico, é um combate de ideias. Batman quer que a jovem receba a punição que está na lei e Mulher-Maravilha que aceitou protegê-la, sem saber dos seus crimes sabe que isso é certo, porém não pode quebrar o juramento sagrado que fez. Assim, precisa travar um debate interno baseado em questões éticas e morais e, ainda, lutar com seu amigo e parceiro de equipe. A Trama gira em torno dessas diferenças e dos sentimentos da protagonista.
A única que pode romper com essa situação é a própria Wellys já que foi ela quem pediu proteção. Nesse momento, temos o clímax da história e ele traz o que as tragédias gregas tinham de melhor: tensão, valorização das emoções dos personagens e, claro, o final trágico! Não vou comentar para evitar spoilers, porém vou dizer que é um desfecho que atinge as pessoas durante a leitura, assim como as peças faziam com o público dos teatros gregos. Portanto, temos aquilo que o filósofo Aristóteles definiu como catarse, ou seja, a purificação das almas que é alcançada após uma descarga de sentimentos e emoções que afloram após assistir uma obra teatral ou, no nosso caso, ler uma HQ que bebe dessa fonte.
Com tudo que já vimos acima, percebemos que o roteiro de Rucka é muito bom e inteligente. Além disso, ele consegue contar a história utilizando-se de poucos balões, usa os recordatórios de maneira muito eficiente para transmitir os pensamentos dos personagens, tornando a narrativa bem dinâmica e abrindo espaço para a arte e a narrativa visual de J. G. Jones e para as belas cores de Dave Stewart.
Assim, vemos que o desenhista trabalha muito bem com a distribuição de quadros na página, fazendo com que a narrativa fique mais fluida e que ele utiliza muito bem os diferentes planos e ângulos de visão, principalmente os planos médios, primeiros e primeiríssimos planos que valorizam as expressões e rostos dos personagens, contribuindo para o caráter introspectivo que a história exige. Também é interessante notar que Jones utiliza poucas splash pages (páginas inteiras) e poucas páginas duplas e isso está bem alinhado ao estilo de narrativa intimista. Quando essas composições de página ocorrem, elas funcionam para quebrar o ritmo e destacar certos momentos. Os cenários e planos de fundo são bem detalhados também.
Ainda sobre o trabalho de J. G. Jones, podemos mencionar um ponto negativo: a sexualização da Mulher-Maravilha. Aqui, ao contrário de outras obras, vemos que o foco nas curvas, exageros nas poses, volumes e ângulos que focam no corpo da heroína ocorrem mais quando ela está em seus trajes civis do que quando está uniformizada.
Para concluir o assunto da arte, falaremos da arte-final e da colorização. Na primeira, notamos que Wade Von Grawbadger potencializa o traço de Jones trazendo um ar mitológico para a obra e que as cores de Dave Stewart valorizam os desenhos e, principalmente, traz o contraste existente entre Mulher-Maravilha e Batman, pois quando ele está em ação vemos uma paleta de cores mais escura e sombria, equando, ela está em cena vemos tons mais claros. Quando as Erínias aparecem, predominam cores frias, indicando o mau agouro que elas representam.
Mulher-Maravilha Hiketeia é um ótimo quadrinho de super-herói e nos lembra que o gênero da superaventura pode ser muito mais do que apenas pancadaria desenfreada. Além do que, é um excelente ponto de partida para quem quer começar a ler quadrinhos da maior super-heroína de todos os tempos e HQs de heróis no geral!
Obs: Para quem quiser saber um pouco mais sobre rituais de súplica na Grécia Antiga e, principalmente, o caso de Aquiles e Licáon, recomendo a leitura do artigo (em inglês) Hiketeia de John Gold que foi publicado na revista The Journal of Hellenic Studies que você pode ler aqui.
Obs 2: A passagem da súplica de Licáon, filho do rei Príamo de Tróia, para Aquiles está no canto XXI da Ilíada entre os versos 64-121.
Para quem só se importa com números:
Nota: 8/10
Dados da HQ:
Roteiro: Greg Rucka
Arte: J. G. Jones
Arte-final: Wade Von Grawbadger
Cores: Dave Stewart
Editora original: DC Comics
Tradução e Edição: Carol Pimentel
Adaptação: Rodrigo Guerrino
Letras: Guilherme Baldin
Editora no Brasil: Panini Comics
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