Nosso 2023 em quadrinhos! Confira as melhores leituras do ano!
Por: Iuri e Igor Biagioni Rodrigues
É... mais um ano chegando ao fim, e, com isso, decidimos reunir os melhores quadrinhos que lemos em 2023. Junto de um breve comentário sobre cada um deles. Vale lembrar que a lista não segue uma ordem de preferência e que obras escolhidas não foram publicadas necessariamente neste ano. Sem mais delongas, vamos para as nossas listas!
Top 10 quadrinhos lidos em 2023 – Igor Biagioni Rodrigues
10- Nada a Perder- de Jeff Lemire -EUA, 2017- Editora no Brasil: Nemo, 2018
Breve comentário: “Nada a Perder” é mais uma incrível obra de Jeff Lemire (para variar, né?). O quadrinho conta a história de Derek Ouelette, um antigo jogador de Hóquei, que ao invés de se tornar um ídolo famoso, virou um bêbado solitário e violento. Porém, com o retorno de sua irmã à cidade, Derek se vê obrigado a enfrentar seu passado e a violência pode ou não ser a resposta. Lemire se consolidou como um dos maiores quadrinistas do Canadá e do mundo, e não foi à toa. Seus trabalhos costumam focar no conflito humano e nas relações pessoais, em “Nada a Perder” não é diferente. O autor nos aproxima de um personagem tão frio quanto a cidade que ele vive e nos faz vivenciar os seus dramas e enfrentar os fantasmas do passado com uma dureza retratada na arte e uma frieza presentes nas singelas cores. O que pode parar um homem quando ele não tem nada a perder?
9- Tex: O Grande Roubo- de Claudio Nizzi e José Ortiz - Itália, 1993- Editora no Brasil: Mythos, 2015.
Breve comentário: “O Grande Roubo” talvez seja a história mais cinematográfica de Tex e isso ocorre não apenas pelo roteiro bem construído de Claudio Nizzi que nos prende em uma tensão cativante do início ao fim, com excelentes perseguições, humor, divisões narrativas e um final com uma “justiça poética”, mas também devido a estupenda arte de José Ortiz. Os enquadramentos são extremamente bem pensados, e a narrativa visual é muito fluida. Vale destacar também o traço de Ortiz, principalmente as hachuras. “Tex:O Grande Roubo” possui tudo que um ótimo conto de faroeste precisa ter.
8- Reino do Amanhã- de Mark Waid e Alex Ross - EUA, 1996 - Editora no Brasil: Panini, 2022
Breve comentário: “Reino do Amanhã” se passa em um futuro alternativo da DC. Aqui, um Superman insatisfeito se exila na Fortaleza da Solidão por dez anos. Durante esse período, novos heróis surgem e o mundo se vê sufocado por meta-humanos que não entendem o real valor de ser um herói. Depois de um incidente nuclear que destruiu o Kansas, Superman se vê obrigado a voltar. Mas para a infelicidade dos humanos, ele volta usando seus poderes para tomar a rédea do planeta, mesmo que por bons motivos, a intervenção do herói gera inúmeras consequências. “Reino do Amanhã” é um clássico de dimensões literalmente bíblicas, um conto que não poderia ser contado na Marvel, pois diferentemente da Distinta Concorrência, seus personagens não possuem proporções divinas. Com um roteiro cativante e que mostra a importância da humanidade num mundo super poderoso e uma arte divina de Alex Ross, esta história é essencial para qualquer fã de super-heróis.
7- Tungstênio- de Marcello Quintanilha - Brasil, 2014- Editora: Veneta
Breve comentário: “Tungstênio” é uma obra-prima e Marcello Quintanilha é o nome mais importante do quadrinho nacional na atualidade. Com uma narrativa extremamente cativante, sendo uma aula de construção de tempo dentro de uma HQ, Quintanilha conta a história de quatro personagens ao mesmo tempo: um ex-sargento, um traficante, um policial e sua esposa. Aqui, ninguém é o herói, mas ninguém é o vilão. O maniqueísmo passa longe dessa história em que a humanidade é representada do jeito que realmente é. Os traços e enquadramentos de Quintanilha, somados ao seu roteiro excepcional, são uma aula de como fazer quadrinhos.
6- Scott Pilgrim volumes 1 a 6 - de Bryan Lee O’Malley, Canadá/EUA, 2004-2010- Editora no Brasil: Companhia das Letras (Selo “Quadrinhos na Cia”)
Breve comentário: "Scott Pilgrim" é um 'coming of age' (história de amadurecimento), mas diferente. Essa saga em quadrinhos foi escrita e desenhada pelo canadense Bryan Lee O'Malley e conta a história de Scott, um garoto de 23 anos, desempregado, que divide um apartamento com seu amigo Wallace, começou a namorar uma colegial de 17 anos e tem sua vida resumida entre os ensaios da banda da qual faz parte, a Sex Bob-Omb e jogar jogos de videogame de RPG. Porém, a vidinha ordinária de Scott começa a mudar quando ele conhece a garota dos seus sonhos (literalmente): Ramona Flowers, e para conquistá-la, o garoto deve enfrentar a Liga dos Sete Ex-Namorados do Mal dela. Enfim, Scott Pilgrim é altamente recomendado não só para fãs de quadrinhos, mas para todas as pessoas que gostam de uma boa leitura. A obra te emociona, te faz rir, cantar, lutar e cumpre sua função como entretenimento. Além disso, ela te faz refletir e perceber que a vida é sim feita de fases, mas que você não precisa jogar esse jogo sozinho.
5- Fullmetal Alchemist volumes 1 a 27 - de Hiromu Arakawa - Japão, 2001-2010 - Editora no Brasil: JBC, 2016 - 2018 (Agora, em 2023, saiu a reimpressão)
Breve comentário: "Fullmetal Alchemist" conta a história dos Irmãos Elric, dois garotos que perderam seus corpos numa tentativa de ressuscitar sua mãe quebrando o maior tabu da Alquimia, realizando uma transmutação humana. A fim de recuperar seus corpos, os dois partem em uma jornada atrás da Pedra Filosofal. O mangá trata de relações humanas, religião (fortes inspirações taoistas) e política (crítica ao militarismo, fascismo e ao pensamento de supremacia racial). Tudo isso somado a personagens carismáticos, uma trama extremamente inteligente, humor divertidíssimo e lutas de tirar o fôlego, faz com que a obra da mangaká Hiromu Arakawa seja o melhor shounen (mangás voltados para o público jovem masculino com cenas de ação, humor e protagonista masculino) já feito (falo com tranquilidade).
4 - Ao Coração da Tempestade - de Will Eisner - EUA, 1991- Editora no Brasil: Companhia das Letras (Selo “Quadrinhos na Cia”), 2010.
Breve comentário: No início dessa graphic novel é dito que durante a Segunda Guerra Mundial, muitos jovens, depois de terem sido alistados, eram designados para campos de treinamento. Durante o caminho, eles olhavam pela janela revivendo sua vida uma última vez, não porque achavam que iam morrer, mas porque a partir daquele momento, nada mais seria o mesmo. “Ao Coração da Tempestade” é justamente sobre isso. O quadrinho autobiográfico conta a história e trajetória de vida de “Willie” Eisner e sua família. As memórias vão sendo revisitadas a partir de elementos, fatos ou pessoas que Willie vê pela janela do trem, sendo momentos extremamente contemplativos. Mas não é só isso, assim como Eisner, acompanhamos tudo através de uma janela, uma janela para o passado, em uma época em que as coisas não necessariamente eram mais simples, mas o trouxeram até ali e moldaram quem ele era. É uma HQ extremamente literária, e é só mais um dos motivos do porquê Will Eisner foi/é o maior nome dos quadrinhos.
3- Pílulas Azuis- de Frederik Peeters - Suíça, 2001-Editora no Brasil: Nemo, 2015
Breve comentário: Neste emocionante quadrinho, Frederik Peeters conta a sua história ao lado de sua companheira, Cati, desde o momento em que se conheceram, se reencontraram e se apaixonaram até a revelação de que ela, e seu filho de quatro anos (de outro relacionamento) são soropositivos. “Pílulas Azuis” retrata de forma tocante todos os sentimentos de dúvida, angústia e principalmente de amor dessa família. O quadrinho nos mostra o quão ignorante somos em relação ao HIV, ao seu tratamento, aos seus portadores e como podemos ser preconceituosos. É um quadrinho extremamente relevante e que mostra que não são nossas doenças e nossos males que definem a vida que levamos.
2- Verões Felizes- de Zidrou, Jordi Lafebre e Mado Peña - França, 2014-2021 - Editora no Brasil: Pipoca e Nanquim, 2023
Breve comentário: Anualmente, quando chega o verão, os Faldérault se preparam para sair de férias. E todo ano, Pierre, o pai, corre contra o tempo para terminar de desenhar as páginas de suas histórias em quadrinhos, estando sempre atrasado. Quando finalmente termina, ele e sua família embarcam na sua Renault 4L (a “Senhorita Estéril”), rumo ao sul. Durante a leitura o quadrinho, acompanhamos a família crescer, novos filhos nascem, os problemas familiares vem à tona e vemos as dificuldades financeiras e inúmeros problemas ao longo do caminho. Porém, a HQ nos mostra a força da família Faldérault e como os pequenos prazeres da vida, somado às pessoas que amamos, fazem tudo valer a pena. A belíssima arte de Jordi Lafebre e Mado Peña (cores), junto ao singelo roteiro de Zidrou fazem dessa obra um dos quadrinhos mais belos e emocionantes que já li.
1- Persépolis - de Marjane Satrapi - França, 2000-2003 - Editora no Brasil: Companhia das Letras (Selo “Quadrinhos na Cia”), 2007.
Breve comentário: “Persépolis” retrata os acontecimentos da Revolução Iraniana de 1979 e uma das guerras mais complexas de toda humanidade, um conflito entre o Iraque e o Irã que envolve diversas questões políticas, as quais não irei me aprofundar, uma vez que jamais poderia fazer isso melhor que o Iuri já fez em sua crítica. Mas o que diferencia “Persepólis” de outros tantos livros que retratam o conflito, é que a HQ nos mostra tudo isso através do olhar de uma criança. Com uma narrativa muito didática e divertidíssima, Marjane Satrapi conta não só sobre a guerra no Oriente Médio, mas como isso afetou sua vida e quem ela é. Ao longo de vários capítulos acompanhamos Marjane crescer, e através de seus olhar, vemos diversos assuntos serem abordados no quadrinho: política, religião, valorização da cultura persa, feminismo, sexualidade e relações humanas. Sem dúvidas, é uma obra essencial onde o oriente toca o ocidente!
Menções honrosas
Agora, vejamos 4 quadrinhos que poderiam estar na lista principal, mas que por pouco ficaram de fora.
1-Sand Land- de Akira Toriyama - Japão, 2000- Editora no Brasil: Panini, 2022
Breve comentário: "Sand Land" se passa em um mundo pós-apocalíptico que depois de uma guerra, a água foi privatizada. Assim, a água é monopolizada por um rei e seus militares. Até que um dia, cansado de tanto sofrimento, o Xerife Rao pede ajuda ao príncipe dos demônios, Belzebub, um garoto bondoso (irônico, não?) que aceita embarcar nessa viagem para descobrir o que aconteceu com a água e encontrar um rio que não é controlado pelo governo autoritário. Toriyama é um dos meus quadrinistas favoritos, e muito se deve ao seu traço cartunesco, ambientes e cenários incríveis e críticas sociais recheadas de humor, tudo que "Sand Land" possui.
2- We 3- de Grant Morrison, Frank Quitely e Jamie Grant - EUA, 2004 - Editora no Brasil: Panini, 2012
Breve comentário: Dessa vez, Grant não decidiu "pirar" em seu roteiro e conta uma história simples, mas com um grande impacto. "We 3" conta a história de três animaizinhos que foram modificados pelo governo para serem transformados em máquinas mortíferas. O quadrinho é extremamente violento, contrastando com sua emotividade. Entretanto, o maior mérito aqui se deve pela parte artística. Morrison é extremamente inventivo nas composições e enquadramentos, Frank Quitely responde à altura, entregando painéis em 3D com a finesse de sempre em seu traço e Jamie Grant faz um ótimo trabalho de arte-final e de cores. Tudo isso faz com que "We 3" seja uma das HQs mais inventivas artisticamente falando.
3- Senhor Milagre - de Tom King e Mitch Gerads - EUA, 2017-2018- Editora no Brasil: Panini, 2019
Breve comentário: Tom King é um dos mais importantes quadrinistas da atualidade e "Senhor Milagre" é a prova disso. Scott é o maior escapista do mundo, e já conseguiu realizar todas as façanhas, menos uma: escapar da morte. Será que ele consegue? O novo deus terá que se matar para ver se consegue. Em uma parceria brilhante com o artista Mitch Gerads, King renova a magistral mitologia por trás do Quarto Mundo de Jack Kirby.
4- nem todo robô- de Mark Russel, Mike Deodato Jr. e Lee Loughridge - EUA, 2022- Editora no Brasil: Comix Zone, 2022
Breve comentário: A história se passa no ano de 2056 e os robôs substituíram os humanos em todos os trabalhos. A coexistência entre humanos e robôs é cada vez mais difícil. A cada família humana, um robô é designado, e essa família se torna dependente dele. Na casa dos Walter, o robô destinado a eles, Navalhoide, passa seu tempo livre na garagem construindo uma máquina que eles acreditam ser feita para matá-los. "nem todo robô", com seu humor ácido, é uma crítica a relacionamentos tóxicos e ao crescente uso de inteligência artificial, sendo extremamente atual.
Top 10 Quadrinhos lidos em 2023 - Iuri Biagioni Rodrigues
1 - Apesar de Tudo - de Jordi Lafebre - França, 2020 - Editora no Brasil: QS Comics, 2021
Breve comentário: Apesar de Tudo é a estreia do quadrinista catalão Jordi Lafebre como roteirista, pois até então ele atuava como desenhista e colorista. E foi uma baita estreia! Este quadrinho conta a história de Ana e Zeno. Eles se conheceram e se apaixonaram na juventude, mas nunca conseguiram ficar juntos, pois a vida os levou a tomar rumos diferentes. Apesar de tudo (perdão pelo trocadilho), eles ainda se gostam e sempre mantiveram contato por meio de cartas. Lafebre conta esta história de trás para frente, ou seja, começa com os dois na velhice e vai até o momento em que os protagonistas se conheceram. Nisso, ele cria uma narrativa que te prende do começo ao fim e com um excelente entrelaçamento, explicando as origens e causas de diversos momentos, situações e objetos que aparecem no momento em que Ana e Zeno estão mais velhos nas partes em que vemos a juventude deles. Além disso, a arte e as cores de Jordi Lafebre são um espetáculo! Enfim, esta HQ é uma comédia romântica muito bem feita que vai te cativar bastante mesmo que não goste de histórias de amor/romances! (Meu caso)
2 - A Rosa Mais Vermelha Desabrocha: o amor nos tempos do Capitalismo tardio ou por que as pessoas se apaixonam tão raramente hoje em dia - de Liv Strömquist - Suécia, 2019 - Editora no Brasil: Companhia das Letras (selo Quadrinhos na Cia.), 2021
Breve comentário: Nesta HQ a quadrinista sueca Liv Strömquist, que estudou Ciência Política e Sociologia, busca explicar os motivos que levaram as pessoas a terem relacionamentos amorosos tão superficiais, voláteis (ou como dizia o sociólogo Zygmunt Bauman: líquidos) na época em que vivemos. Para isso, ela faz uma reflexão com base em diversos pensadores e pensadoras como Byung Chun Han, Sören Kierkegaard, Slavoj Zizek, entre outros. Analisa relacionamentos de famosos como Leonardo Di Caprio e Beyoncè e tece uma análise histórica do amor desde a Antiguidade até os dias atuais. Tudo isso é feito com humor e sarcasmo geniais. A arte "simples" combina bastante com o caráter crítico e irreverente da obra. Como aspecto negativo temos a grande quantidade de texto e uso de termos e citações acadêmicas que travam um pouco a leitura, porém as discussões desta história em quadrinho são muito relevantes e interessantes para compreender a nossa sociedade. Ótimo quadrinho!
3 - A Idade de Ouro Volumes 1 e 2 - de Roxanne Moreil e Cyril Pedrosa - França, 2018-2020 - Editora no Brasil: Nemo, 2022
Breve comentário: Este quadrinho foi a estreia da francesa Roxanne Moreil como roteirista. O experiente Cyril Pedrosa auxiliou no roteiro e foi responsável pela arte e pelas cores da HQ (a arte dessa HQ é belíssima). A Idade de Ouro é muito mais profundo do que a história de uma princesa que perdeu trono e que precisa recuperá-lo. É um quadrinho sobre luta de classes, poder popular, ganância, tirania, feminismo, utopia e busca por um mundo melhor. A história nos diverte e, principalmente, nos faz refletir sobre a sociedade em que vivemos. Roxanne Moreil e Cyrill Pedrosa nos lembram que as desigualdades e injustiças do mundo não são naturais, elas são construídas social e culturalmente. Portanto, podemos mudar essa realidade assim como os personagens do quadrinho fazem. Para isso, devemos lutar contra a exploração, opressão e exclusão para construirmos um mundo melhor, enfim, para vivermos numa Idade de Ouro!
4 - Nova York: a vida na grande cidade - de Will Eisner - EUA, HQs feitas entre 1981 e 1992 - Editora no Brasil: Companhia das Letras (selo Quadrinhos na Cia.), 2019
Breve comentário: Este encadernado é uma coletânea de histórias do mestre da nona arte Will Eisner. Aqui, lemos as seguintes histórias: Nova York - a grande cidade, O edifício, Caderno de tipos urbanos e Pessoas invisíveis. Todas elas têm uma temática em comum: a vida e as dinâmicas existentes no espaço urbano. Nestas histórias, Eisner traz ruas, bairros, prédios, casas, trânsito, metrô, horário de pico, barulhos, cotidiano dos trabalhadores, problemas sociais, desigualdade, enfim, tudo que constitui uma metrópole. Vale mencionar que o destaque do quadrinista vai para as pessoas que poderiam existir em qualquer cidade que conhecemos e ao mesmo tempo não podem estar em nenhuma delas. A ideia de lugar é muito importante nas obras do quadrinista e ele desenvolveu uma relação muito própria com a cidade. Nas palavras do dele: "A cidade, para mim, é um grande teatro. É uma fonte inesgotável de histórias, principalmente por causa da grande concentração de seres humanos cuja vida tem impacto uma sobre a outra. E cada ser humano traz consigo uma história completa. É a luta pela existência”. A arte cartunesca de Eisner é genial, fugindo do rígido esquema de quadros e trazendo emoção e expressividade nos personagens. Nova York é uma obra-prima dos quadrinhos e um ótimo registro da vida e das relações sociais existentes nas cidades. Leitura recomendada para todas as pessoas, independentemente se são ou não fãs de quadrinhos
5 - Stuck Rubber Baby: Quando viemos ao mundo - de Howard Cruse - EUA, 1995 - Editora no Brasil: Conrad, 2021
Breve comentário: A obra trata da homossexualidade e do racismo na década de 1960 no sul dos Estados Unidos, em meio ao Movimento dos Direitos Civis. A história se passa em Clayfield, Alabama. Nela vemos o jovem Toland Polk que vive de maneira discreta e preocupado com o racismo, homofobia, com políticos segregacionistas, os policiais corruptos e os membros violentos da Klu Klux Klan, mas se sente impotente para fazer alguma diferença. A situação muda quando ele conhece a garota Ginger Raines que o apresenta ao grupo diversificado de jovens que luta pelos direitos. Toland se junta aos protestos locais e decide lutar ao lado dos novos amigos contra o preconceito e a intolerância. O quadrinho continua muito atual e também mostra a importância da luta coletiva para buscar uma sociedade mais justa, fraterna e igual. A arte de Cruse é muito boa também. Ele usa as hachuras com maestria e cria layouts de páginas bem dinâmicos. É um clássico Poc!
6 - Bordados - de Marjane Satrapi - França, 2003 - Editora no Brasil: Companhia das Letras (selo Quadrinhos na Cia.), 2010.
Breve comentário: Marjane Satrapi nos surpreende novamente em Bordados. Ela traz elementos da cultura do Irã que nós do Ocidente dificilmente conhecemos, diz bastante sobre o modo de vida e sexualidade feminina no Irã, mostrando que as mulheres são protagonistas de sua história e evidenciando que elas são donas de seus próprios corpos, num país machista e opressivo. Além disso, Satrapi mostra que apesar das diversas diferenças culturais existentes entre Oriente e Ocidente, as necessidades, os desejos, as aflições e, principalmente, a lutas das iranianas são muito mais próximas do que poderíamos imaginar. O traço de Marjane é simples, mas bastante expressivo e e combina perfeitamente com o estilo de sua narrativa. É mais um excelente trabalho da autora iraniana.
7 - O Soldador Subaquático - de Jeff Lemire - EUA, 2012 - Editora no Brasil: Mino, 2016
Breve comentário: O Soldador Subaquático é um belo trabalho do quadrinista canadense Jeff Lemire. Aqui, como em muitas de suas obras, a paternidade é o tema central do quadrinho. Lemire traz a história de Jack, um homem formado em letras que atua como soldador subaquático em uma plataforma de petróleo de uma pequena cidade do Canadá. Jack teve uma infância conturbada, pois seu pai era alcoólatra e sua mãe acabou se separando do marido por causa disso. Ainda quando era pequeno, seu pai que era mergulhador, morreu misteriosamente. Esse fato deixa Jack atormentado até a vida adulta. Essa inquietação piora quando o protagonista encontra um relógio que recebeu de seu pai, pois o ocorrido começa a despertar lembranças que estavam guardadas. Outro detalhe importante da trama é que Susie, esposa de Jack, está grávida do primeiro filho do casal e, portanto, necessitaria da presença dele. Contudo, Jack sai de casa para buscar respostas sobre seu passado com o pai e acaba cometendo os mesmos erros que ele. Ao se dar conta disso e ao conseguir as respostas que procurava, ele decide retornar para casa e assumir com responsabilidade a sua missão de pai. A arte de Lemire também merece destaque! Seu traço cartunesco funciona muito bem e é muito expressivo, a disposição dos quadros nas páginas são inteligentes e bem pensadas, os enquadramentos são precisos e atendem às necessidades da narrativa e uso de rimas e metáforas visuais é muito bem elaborado. Enfim, este quadrinho pode ser resumido pela famosa frase de Kierkegaard: "A vida só pode ser compreendida olhando-se para trás, mas só pode ser vivida olhando-se para a frente".
8 - Ousadas: mulheres que só fazem o que querem volumes 1 e 2 - de Pénélope Bagieu - França, 2016 - Editora no Brasil: Nemo, 2018
Breve comentário: Ousadas é uma série de quadrinhos da francesa Pénélope Bagieu que tem como objetivo resgatar a história e importância das mulheres ao longo da História. A quadrinista traz 15 personagens no primeiro volume e 15 no segundo, totalizando 30 mulheres abordadas. Pénélope escolheu mulheres de diferentes épocas (da Antiguidade até os dias atuais), de diferentes países, diferentes culturas, etnias religiões, de orientações sexuais e identidades de gênero, trazendo diversidade e representatividade para a HQ. A historiografia tradicional é muito masculina, portanto historiadores ignoraram a participação feminina durante muito tempo. Mulheres foram convenientemente apagadas da História, dando a impressão que apenas homens eram capazes de grandes feitos e dignos de atenção/valorização por parte da sociedade. Com o tempo e com a luta constante das mulheres, obras com um revisionismo crítico problematizaram essas questões e começaram a mostrar que as mulheres também são agentes da História. Ousadas faz parte desse movimento e resgata mulheres que foram esquecidas, mas que tiveram grande importância em suas áreas de atuação e que ousaram fazer coisas que não eram vistas como "coisa de mulher". Pénélope Bagieu usa um traço simples e cartunesco que combina perfeitamente com a linguagem fácil, com o bom humor, com as críticas e com as informações passadas pelo roteiro. Ao finalizar a leitura, com certeza, você vai querer saber mais sobre as 30 protagonistas da obra.
9 - Regresso ao Éden - de Paco Roca - Espanha, 2020 - Editora no Brasil: Devir, 2022
Breve comentário: Em Regresso ao Éden, o quadrinista espanhol Paco Roca (roteiro e arte), traz a história de sua família, especialmente de sua mãe Antonia, a partir de uma única fotografia tirada na antiga praia de Nazaret em Valência no ano de 1946. O quadrinho passa pela infância, juventude e velhice de Antonia tendo a foto como fio condutor da narrativa. Ao longo do quadrinho, vemos como era a relação da personagem com os avós e tios de paco, as dificuldades de viver no regime ditatorial do general Francisco Franco (ditadura fascista que vigorou na Espanha de 1939 até 1975), a cultura e religiosidade local e o cotidiano das pessoas. Paco utiliza enquadramentos, disposição de quadros, cores, flashbacks e flashfowards de maneira inteligente, prendendo a nossa atenção na leitura. Por fim, ele nos lembra que fotos são mais que meros registros de acontecimentos, elas são lugares de memória e que uma única foto pode guardar diversas histórias e sentimentos.
10- Pílulas Azuis - de Frederik Peeters - Suíça, 2001 - Editora no Brasil: Nemo, 2015
Breve comentário: Nesta HQ autobiográfica, o suíço Frederick Peeters narra a história de como conheceu e se relacionou com a sua esposa Cati que é soropositiva (o filho de um outro relacionamento de Cati também é soropositivo). Quando HIV é o assunto, vemos quão ignorantes somos sobre esse tema ou como focamos no seu lado científico/biológico de vírus, deixando de lado o aspecto humano que é o principal. Peteers faz exatamente isso: valoriza o lado humano. O foco da HQ está na relação (afetiva, amorosa, sexual e psicológica) entre Frederick e Cati e também nas conversas com pessoas próximas ao casal. Ao longo da história, Peeters quebra os mitos e os estereótipos existentes em relação ao HIV, mostra que a doença não define as pessoas e, principalmente, que pessoas com Aids podem e devem ser amadas como qualquer outra e que a sociedade precisa parar de enxergá-las como um "perigo". O estilo de arte cartunesco, dinâmico e solto deixa a narrativa mais fluida, envolvente e ajuda na retração das emoções dos personagens. É um baita quadrinho. Vale muito a pena ler e refletir sobre essa obra.
Menções honrosas
Agora, vejamos 5 quadrinhos que poderiam estar na lista principal, mas que por pouco ficaram de fora.
1 - Estórias Gerais - de Wellington Srbek e Flavio Colin - Brasil, 2001 - Edição mais recente: Conrad, 2021
Breve comentário: Estórias Gerais é um clássico do quadrinho nacional. A obra é ambientada na República Velha, mais precisamente na década de 1920, e traz a história de um bando de bandoleiros/cangaceiros que atua no norte de Minas Gerais no município fictício de Buritizal e do jornalista Ulisses Araújo que vai apurar os conflitos da região. A trama é dividida em 6 capítulos que trazem narrativas paralelas que se cruzam de maneira muito inteligente no final e possui ótimos diálogos que trazem muitas marcas de oralidade e regionalidade. Embora seja uma ficção, Estórias Gerais retrata muito as características político-sociais da época em que é ambientada como o Coronelismo, jagunços, presença do exército nacional, desigualdade social no sertão, conflitos e tensões no campo, crendices populares, regionalismo, entre outras coisas. O roteiro de Wellington Srbek (que na época de lançamento da HQ era recém graduado em História), sabe desenvolver os personagens, conectar narrativas diferentes e prender a atenção do leitor. A arte Colin é sensacional, com belos cenários, vestimentas fiéis à época, muita ação, bom uso das onomatopeias e layouts de página bem dinâmicos. Estórias Gerais é um quadrinho ideal para quem gosta de História do Brasil e de obras como Grande Sertão Veredas.
2 - Amor de Gringo - de Marie-Eve Garrier-Moisan, William Flynn e Débora Santos - Canadá, 2020 - Editora no Brasil: Skript, 2022
Breve comentário: Este quadrinho foi produzido pela Universidade de Carleton no Canadá. A HQ é fruto de uma pesquisa acadêmica na área de Antropologia que foi feita Marie-Eve Garrier-Moisan e adaptada por William Flynn e conta com um ótimo trabalho de arte da quadrinista brasileira Débora Santos que cria infográficos, valoriza expressões faciais e utiliza planos que favorecem os diálogos. A obra tem como tema principal o turismo sexual na região nordeste do nosso país, focando na relação de homens estrangeiros com mulheres que vivem Ponta Negra (bairro em Natal - RN). A história em quadrinho traz um pouco da vivência de Marie-Eve com essas mulheres e dá voz e lugar de fala para elas. Quando este assunto é tratado, dificilmente, o ponto de vista das mulheres que estão diretamente envolvidas com o turismo sexual é abordado, então esse quadrinho ganha importância por isso. Além disso, ao longo da leitura, vemos que essa situação é mais complexa do podemos imaginar, pois lida com a visão de mundo, anseios, desejos, relações íntimas e escolhas das (e dos) personagens. É um quadrinho que expande a nossa visão e traz ótimas reflexões para área das ciências humanas.
3 - Frango com Ameixas - de Marjane Satrapi - França, 2004 - Companhia das Letras (selo Quadrinhos na Cia.), 2008.
Breve comentário: Em Frango com Ameixas, além de resgatar e valorizar a cultura do Irã, Marjane Satrapi conta a história de seu tio-avô Nasser Ali Khan que vivia em Teerã. A história se passa no ano de 1958. Aqui, vemos que Nasser era um ótimo músico, considerado como um dos melhores a tocar tar (instrumento de cordas) no Irã. Porém, após uma briga com sua esposa, ela decide quebrar o seu precioso instrumento. Após esse episódio, ele não consegue ter a mesma alegria e habilidade de tocar, então decide aguardar a morte. A história ocorre nos oito dias de espera dele e, durante a leitura, vamos conhecendo um pouco mais sobre o passado do protagonista, sua relação com a música, suas convivências (com destaque para a mulher que foi o seu primeiro amor), sobre sua família (já no presente) e no futuro, vemos como a quadrinista conheceu a história de seu tio-avô. Marjane é uma grande contadora histórias e a soma de seu traço leve, simples e muito expressivo com ausência de requadros em algumas páginas e com um roteiro inteligente, a narrativa fica mais fluida e dinâmica. No fim, descobrimos o motivo da verdadeira depressão de Nasser e vemos que é muito mais que a perda do instrumento predileto.
4 - Não era você que eu esperava - de Fabien Toulmé, França, 2014 - Editora no Brasil: Nemo, 2017
Breve comentário: Não era você que eu esperava é uma graphic novel autobiográfica, na qual o quadrinista francês Fabien Toulmé narra como ele e sua esposa Patricia que é brasileira lidaram com o nascimento de sua segunda filha: Julia, que nasceu com Síndrome de Down (não percebida e nem diagnosticada durante a gestação). Desde o início da gravidez, vemos que Toulmé estava preocupado com uma possível trissomia. Ele deixa bem claro que tinha preconceito com pessoas com Síndrome de Down, então lidar com a filha foi difícil para ele. Fabien Toulmé mostra todos seus sentimentos nesse processo que vão desde raiva, passando por frustração, desprezo pela filha até chegar em aceitação e, principalmente, amor por Julia. Nesta parte, a arte simples, limpa, cartunesca e a paleta de cores (praticamente fria e monocromática) possuem papel importantíssimo, pois ajudam na expressividade e na representação dos sentimentos do personagem. O quadrinista foi muito corajoso nesta HQ, pois não esconde seus pensamentos negativos e preconceitos com a própria filha. Vemos que Toulmé precisou respeitar e compreender as diferenças. Deste modo, começou a amar Julia, ser muito atencioso e presente, defensor de pessoas com Síndrome de Down e percebeu como estava (muito) errado antes. Como o próprio Fabien diz para a filha: "Não era você que eu esperava, mas obrigado por ter vindo".
5 - Reino do Amanhã - de Mark Waid e Alex Ross - EUA, 1996 - Editora no Brasil: Panini, 2022
Breve comentário: Reino do Amanhã é um excelente exemplo de como os quadrinhos de super-heróis conseguem cativar muitas pessoas e, principalmente, de como o gênero da superaventura pode ir muito além da pancadaria, abordando temas mais complexos e nos levando à reflexão. Em 1996, quando a HQ foi lançada, as revistas de heróis estavam passando por mudanças no estilo do tom da narrativa e da arte. Assim, as histórias ficaram mais sombrias, os heróis eram violentos e representados com músculos muito exagerados, trajes cheios de detalhas e as personagens femininas eram extremamente sexualizadas. Então, com Reino do Amanhã, Mark Waid (roteiro) e Alex Ross (arte) criticam essa situação resgatando o espírito dos super-heróis. A trama se passa num futuro alternativo em que os heróis tradicionais da DC estão aposentados e os novos superseres são filhos ou cópias deles. No entanto, esta nova geração de heróis é bastante violenta, inconsequente e passa muito tempo com brigas internas. Após um incidente no Kansas, Superman, por insistência da Mulher-Maravilha, decide voltar à ativa. Assim, o herói como um messias retorna para restaurar a ordem e a paz. Superman e a Liga acabam ficando muito autoritários nesse processo. Todos acontecimentos são acompanhados pelo Espectro e pelo pastor Norman McCay, que é o fio condutor da narrativa. O roteiro é tão bom que nos dá a sensação de estar observando junto deles. Além disso, a história traz fortes referências religiosas (a começar pelo título que em inglês, Kingdom Come, é a parte "venha a nós o vosso reino" da Oração do Pai Nosso) e pela intertextualidade com o livro do Apocalipse. Arte de Alex Ross é um desbunde. Enfim, Reino do Amanhã é uma história que discute religião, fascismo, democracia, armas nucleares, convívio com as diferenças e muito mais. É um lembrete de que os super-heróis são a mitologia moderna!
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